naperon

Duas boas amigas juntam-se para desarrumar os bibelots.

quarta-feira, julho 13, 2005

Cenário improvável de catarse

Lisboa, Rua dos Fanqueiros, fim de tarde.

Duas mulheres choram por motivos diferentes. A morte e a família. As portas do carro abertas. Uma terceira mulher socorre as duas, sabendo que não salvará nenhuma. Três cigarros são fumados. No passeio, as pessoas olham. Há uma loja (riomar) que anuncia uma secção para PESSOAS FORTES. Uma das duas mulheres que chora diz "somos nós". A terceira mulher sente-se a improvisar num cenário improvável, sem grandes falas. Já as usou muitas vezes - não se repetirá. Se calhar, já não acredita que alguma coisa que diga sirva para alterar o enredo, o drama. Prefere guardar o momento para ficção, será? Aí será mais claro o que pensa - a vida é mesmo assim.

Antes de partirem, sorriem. Não sei bem porquê, mas sorriem. Regressam a cenários mais prováveis. Entram no carro com as portas abertas e partem. A terceira mulher conduz. Falam de luto. O luto já começou há muito tempo. Mas tarda em terminar.

A terceira mulher sabe o que a une às duas mulheres que choram. Mas tem uma sensação de momento inusitado. Foi um momento perdido no tempo, descontextualizado, separado da vida, mas que diz tudo acerca daquilo que as faz humanas, mulheres, que diz tudo acerca daquilo que as une. Há catarse, mas em nome de quê? A terceira mulher sabe a resposta. Em nome da vida, a única coisa realmente importante. A terceira mulher gostava de dizer isso às outras duas mulheres, gostava que acreditassem, mas a terceira mulher também sabe que o seu luto ainda não terminou. Vive o momento como um segredo e transforma-o em ficção. Para que nenhuma das três mulheres se esqueça do valor que têm, apenas por si. Sozinhas, em catarse, num cenário improvável.