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Duas boas amigas juntam-se para desarrumar os bibelots.

segunda-feira, agosto 01, 2005

1 kg de humilhação

Ontem, na Calçada do Combro, vi qualquer coisa inédita: um talho que na montra tinha os nomes e as moradas de duas pessoas que estão a dever mais de 300 euros naquele estabelecimento.

Imaginem: D. Piruti, rua das hortaliças, deve neste talho 350 euros. A outra nota (duas folhas A4 escritas à mão) ainda acrescentava que era um ano de dívidas. Tudo isto ao lado das "promoções" do dia "bifes da vazia X€/kg".

Nunca tinha visto. Já vi entradas de prédios que mostram os pagamentos dos condóminos, mas isto nunca tinha visto. O nome dos devedores. Parece-me pior que cobrador do fraque. A humilhação daquelas senhoras (eram duas mulheres) que, além de não terem dinheiro para pagarem a conta do talho, ainda têm de levar com a expressão crua da sua falha. Os vizinhos dos bairros populares não são muito complacentes e não sei até que ponto funciona a ideia de comunidade. Se existisse de todo uma comunidade, provavelmente as senhoras nem teriam uma tal dívida.

A pergunta é: haverá algo que as pessoas se envergonhem mais do que a pobreza? E o poder daquele talhante que, ao mesmo tempo que abre o fiado, no momento seguinte lança a humilhação. Tenho vergonha daquele homem do talho, foi um golpe baixo. Por muito grave que seja a dívida, foi mais grave o seu gesto leviano de poder. Talhos há muitos, mas as senhoras estão bem identificadas com o estigma de não terem dinheiro para pagar a carne que colocam na mesa. Comida... numa casa portuguesa, com certeza.

6 Comments:

  • At 5:08 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    mas isso é... old news! A ideia não é nova, apareceu num telejornal já deve fazer 2 anos. Nunca vi pessoalmente, mas esse homem do telejornal, disse na altura que metade (ou mais) das dividas que tinham na sua loja, foram pagas no primeiro dia em que colocou os nomes das pessoas na montra. Pode ser feio, mas normalmente o fiado é porque dá mais jeito, quando chega a um ano de fiado, já é um abuso. Para um pequeno comerciante ter 20 ou 30 pessoas a dever tipo 3,6, ou mesmo 12 meses, pesa na carteira, até pq ele já teve de pagar ao fornecedor. A verdade, é q é um metodo que resulta! Muitas das vezes resulta no ponto em que as pessoas dão a cara perante a pessoa e tentam resolver a situação.

     
  • At 10:35 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Lamento discordar das minhas queridas amigas, mas de facto este é um assunto que me choca.
    Este "Sr do Talho" não é mau. É mais um pequeno comerciante à beira do colapso financeiro, que luta desesperadamente para ver liquidadas as dívidas.
    Ele, com certeza que já pagou os bifes e as bifanas ao seu fornecedor, caso contrário não teria mais carne para vender no talho, pois não lhe forneciam...
    As senhoras que lhe estão a dever a carne,de certeza, que se forem ao Pingo Doce, ao Continente ou ao Feira Nova não lhe vendem fiado...e se não pagarem ao Sr do Talho, para além de não terem dinheiro, também não têm vergonha...
    Muitas das vezes, não se trata de "pobreza", nem de "caridade"... Mas como toda a gente sabe...por causa de uns...pagam os outros.

    beijitos
    Fáti

     
  • At 3:40 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    A única conclusão a tirar da crítica ao homem do talho é que o erro primeiro dele é ter confiado nas mulheres que disseram que lhe pagavam.

    A crítica aos meios repressivos (e este é um meio repressivo face à ausência de meios formais de cobrança de dívidas), tem uma única conclusão: não confiar, tratar todos como potênciais criminosos: quem paga ao lado de quem não paga.

    Não confiar nos outros é a única alternativa que eu vejo no teu texto. Não concordo.

     
  • At 3:52 da tarde, Blogger ana vicente said…

    Compreendo o teu ponto de vista, Luís, mas de facto não era isso de todo o que queria dizer. Quando se faz fiado, há uma relação de reciprocidade: o talhante tem de confiar (porque não quer perder clientes) que a senhora pagará, mas a senhora também tem de confiar no talhante. É como num banco. Obviamente que, para se chegar a este limite, houve uma quebra de confiança de parte a parte. Mas a questão para mim não é essa.

    Em resposta a ti e à Fáti, o que gostaria de dizer é que, assumindo-se a posição de aceitar que x tenha uma conta (o tal fiado), deve assumir-se até ao fim. Ou seja, mesmo que a colocação dos nomes seja uma medida eficaz, não deixa de ser uma quebra do contrato de confiança. Acharia preferível, no limite, que o homem do talho as ameaçasse de porrada a infligir este gesto de agressão social, que é arbitrário e sacana.

    Não deixo, é claro, de ter empatia com o homem do talho, provavelmente desesperado. Mas o desespero não é desculpa para nada. Só porque os outros não têm princípios, não quer dizer que nós não os tenhamos.

    Por isso, a minha conclusão é a contrária: deve confiar-se mais nas pessoas. E em primeiro lugar em nós próprios.

     
  • At 4:41 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    "
    É como num banco.
    ...
    Acharia preferível, no limite, que o homem do talho as ameaçasse de porrada a infligir este gesto de agressão social, que é arbitrário e sacana.
    "

    A violência funciona de facto ainda melhor que a vergonha.

    No limite, o banco dá-te porrada: porque se não cumprires, põe-te em tribunal ficas sem a casa, porque se não saíres, eventualmente, tens a polícia à porta e se não obedeceres, levas um tiro. É basicamente isto.

    A ameaça de violência é tão credível que raramente se concretiza. Poucos são os que vão até ao fim neste processo, mas é o facto de ele ser concretizável que lhe dá a força.

    E mais, é tudo feito na praça pública do tribunal e da credit sheet: se fores condenado, fica-te no cadastro que apresentas a todo o futuro empregador ou futuro credor. Aliás, as credit sheets muitas vezes incluem coisas em que não foste condenado por um tribunal. Ao contrário do talhante, o banco não tira o teu nome da lista mesmo depois de pagares o que deves.

    Quanto a arbitrário, parece-me que não foi. Afinal, o talhante apenas pôs o nome dos culpados. A quebra primeira do contrato foi da parte das senhoras. Elas é que são culpadas! A partir daí, até seria legítimo que fossem penalizadas (basta-lhes pagarem o que devem para deixarem de ter o nome assim, exposto: não há sequer penalização para as senhoras; apenas para o homem do talho).

    Acho até que expor o caso é uma resposta mais aceitável que a violência física (ameaçada ou concretizada).

    Viva o talhante!

    [Concretamente, o que é que dirias ao talhante para fazer? Bater nas senhoras se elas não pagassem mesmo depois de ameaçadas? Deixar de confiar, de vender fiado?]

     
  • At 4:59 da tarde, Blogger ana vicente said…

    Concretamente diria ao talhante para tentar uma via frontal e não uma subreptícia. O risco está dos dois lados desde o início. Tal como no banco.

    No caso do talho, não deixa de ser uma relação humana. Tal como no banco, porque é sempre necessária a decisão de alguém accionar um procedimento e essa é humana. E as relações humanas devem basear-se na frontalidade, pelo menos na minha utopia. Logo, ameaçar de porrada é mais frontal.

    Além de que não me parece uma boa decisão comercial para o talhante. Se eu fosse viver para o bairro, não seria cliente dele só por causa daquilo. Poderia ser só eu, mas já era um dado estatístico ou não?

    Aqui, para mim, é uma questão de princípio e de valores humanos. E aqui trata-se de carne, não se trata de um empréstimo bancário. Usei o paralelismo apenas para ilustrar a troca de confiança. És tu quem escolhes o teu banco, és tu que escolhes fazer um empréstimo. Obviamente que fico mais solidária com a ideia de duas mulheres que não têm dinheiro para pagar a carne.

    O talhante escolheu fazer fiado por razões comerciais e não por razões humanas, parece-me. Deve assumir esse risco até ao fim. E, como qualquer relação humana, deve assumir que há limites. Limites claros.

    Obviamente que toda esta questão assenta na idealização que fiz das duas mulheres. Se as imaginasse umas velhas caloteiras, o facto talvez não me tivesse chocado. Mas é um talho! Uma das mulheres teve uma conta de talho durante um ano que não ultrapassa os 350 euros. Não me parece que andasse a comer bifes do lombo à conta do talhante. Nem me parece que mereça essa humilhação. Mas essa é a minha posição pessoal acerca daquilo que acho um gesto vão, inútil e leviano.

     

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