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Duas boas amigas juntam-se para desarrumar os bibelots.

quinta-feira, setembro 15, 2005

O lado anónimo do mundo

A propósito do espectáculo que fui ver ontem, pus-me a reflectir sobre a minha relação com a terra, com a pátria, com a casa.

"Boarding pass" é um espectáculo que fala sobre a necessidade de partir, sobre o sentimento apátrida de não se pertencer a lado nenhum, muito menos ao sítio onde vivemos, onde fazemos as nossas compras, a vidinha, os amigos, o amante e a amante, as crianças. Independentemente da qualidade do espectáculo, estou nos antípodas desse imaginário. Há um momento em que se diz, citando Blaise Cendrars, que "quando amas, tens de partir", enumerando-se tudo o que deves deixar, mulher, filho, amigo, até o aconchego entre dois seios.

"O mundo inteiro continua presente", continua o texto. Um mundo em que aparentemente o que conta é a própria forma do mundo, com toda a sua riqueza. Um mundo onde não interessa onde se vive ou com quem se vive, mas o que se vive e, mesmo isso, apenas com um valor relativo a essa necessidade de não estar preso. Estou nos antípodas, porque o meu mundo é o contrário disso tudo. O meu mundo é específico, local, baseado em relações particulares. Crio o meu mundo com os laços que faço, defino-me também um pouco por eles. Que sentido faz o mundo sem esse sentimento de pertença a uma ordem só nossa?

Saímos do 3ºandar do Chiado e passámos pelo Hotel novo que há no Camões. Espreitámos lá para dentro, observando as esculturas do... (ó manso, ajuda-me). O porteiro convidou-nos a entrar e lá ficámos a conversar com o rapaz, novíssimo, muito disponível a dar-nos conversa, a convidar-nos para irmos visitar o terraço. Lá continuámos o caminho até à Bica e, ao pé da minha antiga escola do ciclo, cruzámo-nos com umas senhoras num carro que estava parado numa subida. A condutora, com um ar de desespero, pediu-nos para pormos o carro dela a andar, porque ela nem para trás nem para a frente conseguia. Lá foi o meu irmão e de lá tirou o veículo. Descemos para o Bicaense e bebemos as nossas águas e seguimos para casa. Esta é a minha definição de mundo. Com nomes de ruas e pessoas que se cruzam de verdade connosco. Com histórias cujo sentido se marcam pela hora e pelo dia e pelo local e por quem estava comigo. E laços criados com irmãos, amantes, filhos, amigos. Em Lisboa, quarta-feira, 23h15, com o Gustavo e com o Manso, só assim fez sentido. Porque eu não tiraria dali o carro nem provavelmente teria olhado para as esculturas e muito menos teria ido ao bicaense a um dia de semana.

Por isso, quando amo, não parto. Fico. Fico bem melhor onde estou.

4 Comments:

  • At 4:50 da tarde, Blogger ana said…

    bem bonito!

    empatizo especialmente com "Crio o meu mundo com os laços que faço, defino-me também um pouco por eles."

    o eugénio de andrade diria qq coisa como: "quando amas permaneces".

     
  • At 6:51 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    1. é mais do que um sentimento apátrida é quando aqui não faz sentido quando te sentes só no meio de tanta gente quando nem a tua vidinha nem os teus amigos nem as tuas comprinhas te salvam quando isso simplesmente não basta
    2. é um amor-ódio com Aqui querer sair para magoar e eventualmente para ver melhor para perceber melhor
    3. é ser exilado à força é ser excluido é não corresponder ao padrão
    4. é estar condenado a errar naturalmente.
    5. Ser "vagamunda"
    6. e sofrer com isso
    7. é não fazer parte do habitat natural é lutar contra o Eu devo amar a minha Vidinha e a minha Pátria e o meu 'Sporting'
    5. é «querer viver deliberadamente, sugar todo o tutano da vida, aniquilar tudo o que não é vida...»
    6. é também uma forma de permanecer, acho.
    p.s.: já gosto do mais do texto(que não é meu - o das comprinhas) vou aprofundar algumas cenas e terminar o espectáculo para a apresentação em Almada a 5 de Novembro)
    até lá,
    m.gil

     
  • At 10:23 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    from my friend Ana Baldaia:

    Há certas coisas que não têm linhas narrativas, há quadros tão inexpressivos que nem linhas.
    Há palavras, sons, cores e há memórias que escolhemos lembrar e outras que escolhemos esquecer.
    Não há bom não há mau não há dualidades há multipluralidades, multiculturalidades, diferentes opiniões e ideias. E depois há crenças, filosofias, romances e ainda há fotos representativas de realidades que nunca existiram, pois não há realidade, senão a opaca do meu, do teu, do seu sonho. Nada existiu jamais, tudo foi como a onda do mar.

    Ainda assim há identidade há a necessidade de perceber a verdade, de procurar a sensibilidade para entender a essência das coisas, para conhecer o abstracto em cada um de nos, e nesse vazio submergir, até não respirarmos jamais, como um bebé que saca tanto leite do seio da mãe que a magoa, que a seca, ate que ela não sinta nem sequer a sua própria fome, a sua própria necessidade.

    A vida é um enorme segredo e dela nada sabemos. Somos pouco, somos muito, somos nem nada nem tudo, mas entre o tudo e o nada importa conhecer, mais ainda importa imaginar.

    Porque só sei que nada sei já foi entendido há muito e agora percebo Aristóteles, e os Gregos, e o calor mediterrânico, e as paisagens. Sim, agora, entendo porque existem as paisagens, assim como as lágrimas, que ainda correm na ausência, no medo, na morte do animal que eu a mesa, como. E eu só sei que e na imaginação, unicamente na imaginação que eu vivo, é que eu posso existir, e viver, e falar com o vento e com o sossego das fontes. Na água, ainda escuto o tempo, e vejo o arco-íris e percebo porque estou longe a cada momento, e sinto profundamente que é pior, é pior e não importa porque eu sei quem sou. Haja o que houver eu sei quem sou e espero.

    Escuta, por mais estranho que isto possa parecer, acredita é mais estranho para mim. Mas a vida é feita de beleza. E é no estranho, e no interior da barata, no sangue da vaca, no olho da cabra, no dente do macaco que vive a beleza. E eu vi. Eu vi, o sangue da vaca no meu sangue, o olho da cabra no meu olho, o dente do macaco no meu dente, e a essência da barata na minha essência.

    Talvez as minhas palavras sejam estranhas, por vezes ocultas ou demasiado portuguesas... se pudesse escrever-te-ia em italiano, mas nunca me ensinaram italiano. Nunca me ensinaram italiano e apesar de tudo eu li o Siddharta em italiano. Eu li. Eu ouvi. Mas não há nenhum poema para te dizer. Nem sei se vale a pena pedir-te o que te vou pedir, escrever o que vou escrever. Mas eu sou coragem. Eu sou menina. Eu sou mulher. Eu sou mar. Eu sou somente determinações da linguagem.

    Fredo

    Caldo

    O tempo passa e as gaivotas morrem, o tempo passa, e os países atravessam-se nas janelas dos comboios. Dos trabalhos, tive todos. Dos livros, quis tudo. Das religiões, tirei muito. Das pessoas, amei inteiro. Do prazer, entreguei tudo. Do amor, agradeço.


    Este. Este. Este.
    Oriente. Oriente. Oriente.
    Mantra, Paz,

    i did love him. i did.
    now, i know, i did.
    porque os sonhos não mentem, mas adormecem.

    sigo viagem. obrigada.

     
  • At 10:37 da manhã, Blogger ana vicente said…

    Muito obrigada, Maria, pela tua participação, tão rica. Gosto do contraste e compreendo o que queres dizer, mesmo que o viva de outra forma bem diferente.

    Quanto à vidinha, será difícil concordarmos. Tudo é uma escolha na vida. Nem quero julgar os que vivem a vidinha ao lado dela, prefiro viver a minha sem a deixar passar ao lado.

    Achei muito bonito o que escreveste e também o que a tua amiga ana baldaia escreveu.

    A 5 de Novembro lá estarei. Avisa-me. e trocaremos mais ideias sobre o assunto.

     

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