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Duas boas amigas juntam-se para desarrumar os bibelots.

sexta-feira, fevereiro 11, 2005

A troca

Um dos actos mais pós-modernos do nosso tempo é a troca dos filhos pelos progenitores. Eu explico: cada vez há mais filhos, crianças ou não, com pais ou educadores separados e, dentro desse contexto, há uma partilha do tempo da criança pelos adultos - a chamada custódia conjunta.
A troca é o testemunho a ser passado, o momento em que a criança passa a ter outro responsável imediato.
Já vivi muito essa troca, já assisti a amigos meus fazerem-no e, ultimamente, tenho tido a ajuda preciosa da série "Começar de novo" para pensar ainda mais sobre o assunto.
Antes de ser habitual, quando a mim me dizia respeito, era sempre doloroso e extremamente desconfortável. De repente, via-me numa situação nova em que eu era a única responsável pela Criança e deixava para trás todo o mundo da normalidade que já tinha criado. Levantavam-se dúvidas, passava-se roupa, instruções. Nesses momentos, receber a Criança era tudo o que desejava, mas era também o que mais temia. Sei agora que não estava sozinha. Vejo-o nos outros e vejo na série. Aprendi que aquele é um momento único, quase um ritual de passagem que as crianças e os adultos esperam e desejam, num grande misto emocional. O tempo que se demora, aquilo que se traz com a Criança, as despedidas.
Quando isto começou para mim, decidi que nunca estaria, no momento da troca, no lado de quem a dá. Isso ainda é mais doloroso, embora também seja um misto emocional de alívio e de tarefa cumprida. Com as crianças é assim. É sempre tudo intenso e cheio de nuances emocionais. O que fiz, uma vez que tinha de devolver a Criança, foi escolher dias em que teria sempre de levá-La à escola e nunca de volta para casa. Era complicado, porque antes aquela era a minha casa e custava-me deixá-la lá e partir. Citando a personagem Jake do "Continuar de Novo", o pai de duas meninas, "é estranho, estás na cozinha da tua casa, o jantar está a ser feito, mas tu não vais ficar para jantar". Era mais ou menos isso que sentia.

Agora tudo é diferente. As coisas ganharam novos contornos, mas continua a existir a troca e, como disse, esse é um dos rituais mais sagrados que conheço. Um dos mais complexos e ricos, em que o tempo é mais acelerado e aquilo que tens para realizar muito mais rico.

Os filhos adolescentes da série já sabem para onde vão a seguir e a minha Criança também. Todos os dias quando A deixo na escola, dá-me qualquer coisa para eu levar para o trabalho. Algo que torne a Sua presença mais duradoura no resto do tempo em que não estamos juntos. É aí que eu sei, como se já não soubesse, que a troca já foi feita há muito tempo. E nunca mais vai acabar. Trocámos de corações, pertencemos um ao outro.

1 Comments:

  • At 8:29 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    A passagem para a normalidade de uma situação anormal é das coisas mais difícieis que há. Dolorosas ou simplesmente custosas, saudáveis ou traumatizantes, as coisas que eram e que agora não são custam a aceitar como "o presente, a vida real", mas a partir do momento em que se tomam como normais, comuns ou aceites há um RESPIRAR MAIS LEVE, UM ALÍVIO!! Sabe muito bem, muito embora a normalidade nunca seja totalissima... pode chegar aos 99%, mas a 100% nunca chega. Porque há a saudade, a alegria, a tristeza, o "se sim, se não", enfim... porque foi vida e porque passámos por ela, fomo-la!

    Andar tipo "saltimbanco", andar a dividir tempos, estar bem disposta nas alturas de verdadeiro convívio, almoçar sem fome, pensar no que outros pensarão, dizer o conveniente... é difícil. Dar a entender que está tudo que nem rosas quando só apetece chorar é fogo! Querer que tudo esteja/seja perfeito, perceber que ambas as partes querem isso mas que há factores inultrapassáveis é Muito difícil!

    Mas lá está ... basta digerir muito bem, pensar, engolir, disfarçar quando é preciso e tudo passa normalmente à normalidade... a 99% da normalidade.

    ps. E perguntar a alguém se quer comer ou tem fome, numa casa que já foi sua!?!??! é bizarro! Ter que ter "cerimónia" com alguém que já pertenceu á casa?!?!?!

    a.m.

     

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