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Duas boas amigas juntam-se para desarrumar os bibelots.

domingo, agosto 07, 2005

Pleno dia numa rua de Lisboa

Há menos de uma hora, estive perante uma situação que me impressionou bastante. Vinha do cinema e, enquanto subíamos pelas escadas do Metro que fazem a ligação entre o Corte Inglès e a rua, vimos um homem a atirar uma mulher ao chão. Corremos pelas escadas acima e cruzámo-nos com o homem a correr na direcção oposta. No chão estava uma velhota, com bem mais de 70 anos. Sentada com a blusa meio rasgada, a senhora gritava. Corremos para ela, tinha sido assaltada, não sem resistir. O homem tinha-lhe levado o colar com um medalhão que era da mãe, que morreu há 36 anos. Estávamos com a senhora a tentar perceber se estava bem, quando o assaltante corre de novo pela rua abaixo seguido de um homem com uns bons 40 anos. O meu irmão, que estava comigo, desatou a correr também atrás deles. Eu fiquei com a senhora e passou ainda outro rapaz a correr. A senhora estava bem fisicamente, ainda no chão. Entretanto, o meu irmão voltou. Levantámos a senhora que estava muito nervosa. As poucas pessoas que estavam ali num Domingo de Agosto em Lisboa começavam a juntar-se à nossa volta, a maior parte a uma distância razoável, meio atordoada com a situação. A senhora começou a ficar mais emocionada a falar do fio. Eu também, perante aquela mulher com idade para ser minha avó, completamente indefesa. Falou obviamente no Salazar, mas isso é o menos importante. Chegou um homem a dizer que tinha visto tudo do carro, que se pôs a apitar, mas não estava ninguém, que se estivesse armado lhe tinha dado uns tiros. A velhota despedia-se de nós com dois beijos e com a voz embargada quando chegou outro homem a dizer para ela esperar, que as coisas dela já vinham. Pelos vistos, o assaltante tinha-se assustado com a perseguição e tinha largado as coisas no caminho. Esse homem disse eu estava no jipe, ia-lhe dar uma trancada, passava-lhe por cima. Continuámos à espera que aparecessem as coisas da senhora. Chegaram pela mão de um rapaz com feições asiáticas. O homem mais velho que tinha perseguido o assaltante ofereceu boleia à senhora. Nós descemos até à esquina e ficámos ali uma boa meia hora, meio atordoados. Um espanhol abordou-nos e perguntou o que se tinha passado, perguntou se o ladrão era preto. Não, era branco. O ladrão era um branco com um ar perfeitamente normal.

Não sei se devíamos ter reagido mais rápido, não me parece que fosse possível. Ajudámo-la. Meia dúzia de pessoas juntaram-se para auxiliar aquela mulher, a quem tinham tirado o fio da mãe, que morreu há 36 anos. Pessoas diferentes aliadas por um certo sentido de comunidade. Salazar, preto, tiros, atropelamento nas frases misturadas de quem ajudou com grande dignidade aquela mulher. Há diferenças que não contam muito em certos momentos. Era um português, um chinês e um espanhol... e não havia anedota nenhuma para contar. Fiquei meio atordoada, já escrevi, com sentimentos contraditórios. Roubar e atacar uma velha indefesa durante o dia numa rua de Lisboa. As pessoas agirem. Assistir a tudo, como se não estivesse a acontecer, ao mesmo tempo que é a única coisa que está a acontecer. Fiquei agitada. No meio daquilo tudo, admirei e estranhei aquelas pessoas. Ajudei a senhora que gosta do Salazar. Ainda pensei naquele assaltante a fugir com cara de desespero, um homem que agride uma velha, para quê, porquê? Para onde terá ido?

Em certos momentos, tudo se funde. Somos todos vítimas e culpados de alguma coisa, mas hoje estava no meio de uma rua de Lisboa uma velha atirada ao chão. E não entendo porquê, nem consigo aceitá-lo. A velhota é a coitada, o ladrão o filho da puta, os homens que o seguiram os valentes, eu a menina boazinha? Quem somos nós no meio de uma rua de Lisboa? Hoje fomos uma comunidade, com tudo de bom e de mau que isso tem para nos dar.

7 Comments:

  • At 11:52 da manhã, Blogger ana said…

    que forte q isso deve ter sido.

    foram uma comunidade no meio de uma cidade, e isso é tão raro.

    pq é que a tua história me fez lembrar o filme "colisão"?

     
  • At 12:01 da tarde, Blogger ana vicente said…

    Acho que, hoje em dia, numa situação destas na cidade, é inevitável pensar no colisão. As diferenças aumentam entre nós e, ao mesmo tempo, temos de nos aproximar naquilo que temos de mais comum. O sentido de humanidade, o sentido de comunidade.

    Sim, foi forte. Foi bastante forte.

     
  • At 12:35 da tarde, Blogger ana said…

    achas que há excesso de concentração humana?

    achas que, cá dentro, temos a capcidade para ver tanta gente desconhecida passar por nós e lidar bem com isso.

    será que algum outro animal consegue desenvolver o mesmo sentido de indiferença perante membros da mesma espécie como nós desenvolvemos perante outros seres humanos numa cidade?

     
  • At 12:57 da tarde, Blogger ana vicente said…

    Excesso de concentração humana? Há demasiados sós entre nós, como no outro dia apontavas aqui http://ablogadela.blogspot.com/2005/08/perguntas-maiores-1.html.

    Cá dentro onde? Em nós? acho que não temos capacidade para ver, a maior parte das vezes.

    Não consigo fazer paralelismos entre animais e pessoas. Dão sempre furado. Quando no outro dia a Criança me perguntou se as pessoas eram animais, disse que sim. Mas as semelhanças são, principalmente, ao nível orgânico e não social. Não podemos atribuir um valor como indiferença aos animais... Só o homem de Neandertal é que começou a enterrar os seus mortos. Nenhum animal antes o teria feito ou fez ou fará, julgo eu.

    O comportamento humano pode ser muito mais irracional do que o de um animal, mas o deste é muito mais previsível e muito menos complexo. Os modelos "sociais" dos animais são intensificados, complexificados, refinados, no melhor e no pior pelos humanos. Mas nada disso é importante. O importante somos nós. Que me interessa que a mãe elefante tem um comportamento exemplar com as suas crias sem qualquer esforço (já que lhe está inscrito naturalmente)? Isso faz dela um ser mais perfeito por não ter de ler livros, de pensar, de conversar sobre a maternidade? A nossa capacidade de reflexão é extraordinária e monstruosa no contexto da natureza animal - é um pau de dois gumes. Mas isso só nos dá peso e responsabilidade que podemos assumir com orgulho. Prefiro fazê-lo assim e assumir a diferença como uma coisa boa. Já ultrapassámos o estatuto de animais. E, até fisicamente, a tendência é essa, parece-me.

     
  • At 1:51 da tarde, Blogger ana said…

    bom, fora de paralelismos com animais, o que penso é que talvez em cidades mais pequenas, em que nos tivessemos que cruzar com menos rostos desconhecidos, talvez houvesse uma menor tensão entre todos.

     
  • At 2:51 da tarde, Blogger ana vicente said…

    Mas aí haveria menos diferença e, logo, seríamos mais pobres...

     
  • At 3:08 da tarde, Blogger ana said…

    talvez sim, talvez não.
    mais gente não implica necessariamente mais gente diferente.
    muitas vezes nas cidades há tanta uniformidade.
    mas sim, há esse risco.

    lembro-me das coisas que mais gostei quando fui a londres, tinha 17 anos e lisboa não era ainda o que é hoje, foi a diversidade. tanta gente diferente a passar nos mesmos sítios.

    pensei nisso do excesso de população por causa do "colisão". somos muitos a viver em pouco espaço e conhecemo-nos muito pouco. seria bom haver espaço temporal ou instituições que incentivassem mais a partilha entre culturas, o conhecimento mútuo, a perca de medo do diferente.

     

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