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Duas boas amigas juntam-se para desarrumar os bibelots.

sexta-feira, agosto 12, 2005

Rituais - O Funeral

Usar aqui a palavra Funeral parece-me escasso. Gostaria antes de falar da Cerimónia da morte. A morte tornou-se invisível nas grandes cidades, às vezes até para as famílias. O luto parece não ter lugar e, muitas vezes, sinto que nem começa. Crescemos sem presenciar a morte, sem acreditar nela, até ao momento em que ela nos entra de rompante.

Imagino que um ritual de morte perfeito seja um que celebre a vida da pessoa que morreu. Que seja pensado, que demore tempo, que as pessoas se reúnam para aquele objectivo concreto de celebrar uma vida que chega ao fim e assim iniciar o seu luto. Não acredito que possa ser alegre (embora possa ter alegria), mas acredito que possa ser catártico e que nos ajude a confrontar a vida tal como ela é: acaba - a morte existe.

Para quê, mais uma vez? Por que acho esse ritual necessário?

Porque detesto viver na ilusão. Porque acredito que o nosso caminho na vida deve assentar na verdade. E acho que não há verdade mais incontornável que essa.

Nos dias que correm, podemos passar uma vida inteira (uns bons 30 anos se tivermos sorte) sem mortes directas à nossa volta. No entanto, também podemos ter mortes próximas sem as tomarmos como reais. Conheço experiências alheias de pessoas que assistiram à morte de alguém e, a partir daí, o mundo descambou - porque não era uma realidade pensar na morte, porque não era sequer uma possibilidade. Se tivermos contacto desde cedo (nao sei precisar a idade, não sou psicóloga, mas imagino que a partir dos seis anos, bom não sei), essa realidade torna-se palpável. Não acredito que possa alguma vez deixar de ser um choque, mas pelo menos aceitá-la já seria um passo importante. Com um ritual em que uma comunidade está presente, integrada e focalizada para o indivíduo que morreu, será mais fácil começar o luto e aceitar a ausência, aceitar a puta da morte.

Ter uma boa relação com a morte é uma utopia que nem sequer considero desejável. Mas ter uma boa relação com as emoções que a morte nos desperta, isso sim é desejável. O problema é esse mesmo: não conseguimos lidar com a tristeza da perda absoluta. A maior parte das vezes, sentimos raiva ou bloqueamos qualquer tipo de emoção. Passei pela morte de dois avós e, antes de morrerem, quando pensava na morte deles, sentia-me triste. Quando morreram, bloqueei tudo e, com a morte de um deles, passado um mês, não me conseguia lembrar as circunstâncias da morte. No funeral do outro, afastei-me e sentia apenas vazio. Ainda hoje, entro em casa da minha avó e fico surpreendida por não estar lá o meu avô. Depois vemos fotos, vemos imagens e temos um choque - alguém que sempre esteve presente, deixa de estar, desaparece.

Bom, isto está a complicar-se. Falemos de casos concretos de rituais. Em aldeias da província, mantém-se ainda o hábito de se reunirem as pessoas em casa da família - levam comida e por lá ficam. Há a história de uma miúda que nasceu na terrinha e, quando um avô morreu, ajudou a lavá-lo e a vesti-lo. Era uma criança e, de certeza que está mais bem preparada para a morte do que qualquer outra miúda da cidade. No Judaísmo, soube, reuniam-se as pessoas durante sete dias em casa dos familiares do morto. Vi isso na série Once and again, mas aí reduziram a coisa para 3 dias. Três dias já parece imenso. Obviamente que esta ideia de ritualizar a morte tem muito a ver com um imaginário norte-americano - lá, vemo-los a fazer homenagens às pessoas. Cá, desfilamos, carpindo, até ao buraco na terra e levamos com uma cerimónia religiosa, escassa, aquém. Parece que nem há mortes laicas. Nos velórios, as pessoas quase sempre evitam o morto. Por cá, tudo é para dentro e, quando é para fora, é carpido, é um lamento lancinante. Não há comunhão da morte, solidariedade. Somos demasiado fechados para isso, parece-me.

Tal como no casamento, não sei qual é a expressão certa para este ritual da morte - para mim, gostaria que houvesse música, mas isso não é para aqui importante. Mas sinto uma necessidade profunda de tornar visíveis os nossos mortos e, com eles, a Morte. Até a nossa própria morte. E isto nada tem de mórbido, pelo contrário. É por amar a vida que o defendo. Não quero vivê-la como medo de olhar em frente.

1 Comments:

  • At 12:33 da tarde, Blogger ana said…

    tema sério e doloroso este.
    quando se lida com crianças tem que se pensar muito bem em como se fala com elas, se lhes permitimos ou não ver o morto, etc

    na minha família optou-se por satisfazer as curiosidades das crianças que estivesse curiosas, e deixar "de fora" aquelas que não quisesse ir.

    em relação à forma como se celebra a morte, revi à pouco tempo o primeiro dos primeiros episódios do "sete palmos"... muito bom. abordava a questão de que até que ponto nos deixamos assumir a dor e embarcar nela até ao fim, ou se contemos para não incomodar os outros.

    acho que sim, temos que nos permitir um tempo para pensar naquela morte, para vivermos a nossa dor à nossa maneira. e permitir a toda a gente que queira (crianças ou adultos) despedirem-se do morto da forma como quiserem.

    e gosto da ideia de uma cerimónia onde se passe algum tempo a relembrar a pessoa através de fotos da vida dela, e de histórias várias, boas e mas.

    é difícil falar disto.

     

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