naperon

Duas boas amigas juntam-se para desarrumar os bibelots.

sábado, setembro 17, 2005

A moral da história

Ontem à noite, depois de três semanas longas de ausência, contei à Criança uma história que não conhecia. A julgar por aquilo que o Expresso vendeu à avó da Criança, é uma fábula de La Fontaine e chama-se "O pescador e o peixinho".

É a história de um pescador que queria pescar um grande e gordo peixe, mas que todos os dias pescava apenas pequenos peixes (amiga do ambiente, a história, não?). Um dia, um peixinho mais esperto disse-lhe para voltar a lançá-lo à água e, assim, ele cresceria, tornando-se um grande e gordo peixe, que o pescador poderia mais tarde pescar. Para grande surpresa minha, o pescador "não vai em cantigas" e prefere ficar com o certo em vez do incerto. Acaba mesmo assim:
"Apesar de ter encontrado
um peixinho bem esperto,
o pescador não quis trocar
o certo pelo incerto...
"

Continuei incrédula a olhar para aquele final, sem acreditar que nada mais houvesse a seguir, a não ser aquilo, um peixe esperto que tenta sobreviver mas que, uma vez que o pescador "achou que não se devia guiar pela ambição", volta para o cesto dos peixes, "que eram pequenos e que já estavam certos". "Em vez de arriscar e acabar por ficar sem nada", o pescador investiu no seguro. Bom... fiquei atrapalhada com o final, mas de seguida descansei-me: havia uma página com a moral da história, assim mesmo moral da história dois pontos. Lia-a para mim, para ver se percebia o raio da história. O início foi elucidativo: "Há quem se deixe convencer com belas promessas, perdendo o que tem como certo no tempo presente." E a moral continuava com lugares comuns do mais vale um pássaro na mão... ou há crianças que "não deixam que alguém lhes faça o ninho atrás da orelha". Respirei fundo, fechei o livro e mantive-me caladinha a tentar racionalizar o que me pareceu uma mensagem completamente estúpida e pequenina.

A pedagogia não é uma coisa fácil. Aqui estou eu agora, com o livro na mão, a pensar. De facto, uma pessoa precisa manter os pés na terra, acreditar naquilo que conquista, defender o seu espaço e não cair em vãs ilusões. Mas também precisa acreditar em sonhos, ser audaz, arriscar. Fico com uma sensação de conformismo. De facto, é isso que a história nos diz, conforma-te com o que tens. Faz-me lembrar a casa portuguesa com pão e vinho sobre a mesa, pobre mas honrada. E a humildade só nos faz é bem.

Toda a socialização é feita no sentido do conformismo, da aceitação das regras. Mas, da mesma forma que não quero que haja um crescimento baseado no lugar comum "quem não arrisca, não petisca", também não quero que a Criança cresça desconfiada, com medo de perder o que tem bem seguro. Fiquei confusa com a moral da história, tão bem explicada, tão pouco idealizada, tão pouco feliz, com o pobre do pescador com o seu cesto cheio de pequenos peixes para vender a um preço pequenino também. A história termina assim, mas que acontecerá ao pobre pescador? E a inteligência do peixinho não é recompensada na história porquê?

Ou eu começo a aceitar a vida como ela é ou acho que este livro vai desaparecer...

2 Comments:

  • At 1:25 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    É muito interessante na definição de uma cultura ver as histórias infantis (e são pouco estudadas), embora como sempre as coisas sejam auto-reguladas e as histórias que a pessoa escolhe sejam as histórias que reflectem as suas ideias e as coisas até podem evoluir. Assim, tu pareces rejeitar essa história apesar de ser muito portuguesinha (ou pelo menos muito Católica, visto que é de origem francesa) e essa seja a nossa cultura.

    The Little Red Hen é uma história anglo-saxónica com uma visão muito diferente das coisas.

    Eu não, disse o porco.
    Eu não, disse o cão.
    Eu não, disse o cavalo.

     
  • At 1:49 da tarde, Blogger jctp said…

    Educar é provavelmente isso. Essa hesitação, esse não saber muito bem, essa dúvida e essa incerteza. Primeiro lanças a mão esquerda, depois a mão direita, ou primeiro a direita e depois a esquerda e por fim entendes que trabalho certo só aquele que é feito com ambas as mãos.

    Não percas essa ambiguidade. Ela não é um caminho, é um fim em si. Pena que hoje pouco se eduque e se confunda educar com formatar.

     

Enviar um comentário

<< Home