naperon

Duas boas amigas juntam-se para desarrumar os bibelots.

sexta-feira, maio 06, 2005

Ler nas entrelinhas

Ontem, a ver um episódio do "Sexo e a Cidade", voltou-me uma velha questão, à qual acrescentei um paradoxo.
Tinha a ver com os nossos juízos acerca do comportamento dos outros. A pergunta essencial resumia-se à metáfora: podemos julgar um livro pela capa? Mas interessou-me mais o raciocínio. Dizia, então a Carrie mais ou menos isto: quando percebemos que uma coisa ou uma pessoa não nos interessa, devemos deixá-la passar ou, pelo contrário, tentar ler nas entrelinhas e aprofundar mais?

Vale a pena ler nas entrelinhas?

A verdade é que se não tivesse tentado ler nas entrelinhas, metade das relações (não só amorosas) que tive e tenho, não teriam acontecido. Por isso, a resposta parece óbvia: sim, vale a pena. O que me intriga é que, provavelmente, foi esse desejo de ver mais além da capa aparentemente pouco a ver comigo que me fez abrir tantos livros. Quando decidimos não ouvir o nosso juízo, ou não ver a capa, o que estamos a fazer, no fundo, é acreditar que haverá mais juízos para lá do primeiro e mais coisas para ler para lá da capa.

Decidimos isso, mesmo quando não temos escolha. Muitas vezes, esse desejo de nos provarmos errados/certos, esse desejo de ver o que está para além, pode simplesmente resumir-se a não querer ver o que está mesmo debaixo dos nossos olhos.

Se uma pessoa, como eu, raramente tem boas primeiras impressões, é bom que tente chegar à segunda, é bom que se bata por isso, mas chega sempre um momento decisivo: o de fechar o livro e olhar para a capa como se já o tivéssemos lido todo. No caso das pessoas, nunca as lemos totalmente, mas há um momento em que tem de se parar. Podem ficar na prateleira, irem parar ao lixo, ficarem ao nosso lado na mesa de cabeceira, ou serem reabertas vezes sem conta, mas nunca, nunca, poderão ficar sempre abertas. Porque os nossos olhos acabam por cansar-se e a voz dentro da cabeça precisa calar-se.

Por muito que já me tenha desiludido, nunca me arrependi de ter lido nas entrelinhas. E a verdade, aí assenta parte do paradoxo, é que por muito que as entrelinhas confirmem a capa, quando estamos embrenhados isso só nos faz continuar, persistir. Mas tudo, enfim, consiste nessa capacidade de ser agarrado. E, aí, não há juízo ou razão que vençam.

No fundo, ler nas entrelinhas é ler algo que não está lá (independentemente de estar ou não estar). É acreditar que há coisas que só os nossos olhos podem ver. Aí pode começar o engano.